Falta d’água. Crise hídrica. A recente e crescente escassez do líquido, seja para abastecer as populações urbanas, seja para produzir energia ou até mesmo alimentos está na ordem do dia. Praticamente todas as análises e especulações sobre esse fenômeno colocam a agricultura como uma das grandes responsáveis, já que é apontada como a mais voraz “consumidora” de água da sociedade.
Mas por que está “faltando água”? A agricultura tem, de fato, culpa disso? Será possível produzir alimentos sem “consumir” água?
Essa preocupação parece perpassar uma série de articulistas que publicam sistematicamente libelos contra o “agronegócio” brasileiro, como se este tivesse uma existência física e não se tratasse de uma categoria de análise econômica. Agronegócio é uma relação de produção, referente à cadeia produtiva agropecuária e florestal, e não as grandes empresas desses setores, alvo preferencial desses analistas.
Destacam a destruição do cerrado que, já ocupado em 40%, “acabaria” nos próximos 20 anos. Longe de ser sinônimo de destruição, esse uso do cerrado tem gerado alimentos, empregos, rendas, divisas e, portanto, desenvolvimento para o Brasil. Diriam que essa é uma forma ufanista e simplista de analisar a questão. Ora, a Lei n. 12.651/2012 vigente permite que esse bioma seja explorado entre 65% a 80%! A “culpa” no caso é do Congresso Nacional, que aprovou a lei que autoriza essa utilização e não do “agronegócio”, como querem esses artigos. Os percentuais estipulados na lei são bons ou ruins? Só uma análise técnica das condições locais poderia dizer. O cerrado como manancial de grandes bacias hidrográficas brasileiras3 ainda está longe de assumir a importância estratégica que tem e, por isso, merece uma atenção especial quanto aos seus usos, sob a ótica de serviços ecossistêmicos.
Argumenta-se também que a produção advinda desses locais é exportada como comida (soja) para engordar porcos na China. É óbvio que se deveria engordá-los aqui e exportar a carne do porco, se possível, já preparada. Assim, a partir dessa premissa, se conclui por uma pretensa inviabilidade do agronegócio brasileiro. No entanto, as contas que estão supostas por danos ambientais irreversíveis, subsídios e rolagem de dívidas, perpetrados e obtidos por parte dos grandes empresários do setor são impossíveis de ser analisadas, porque os dados utilizados são desconhecidos. Daí a se concluir que esse “modelo” é insustentável, além de calcado numa cultura de desperdício, e que jamais será capaz de contribuir para abastecer o mundo dos alimentos necessários ao crescimento da população global, vai uma enorme distância.
A agropecuária representa no Brasil de 8% a 10% do PIB4 que, com o multiplicador do agronegócio, conservadoramente igual a três, leva a produção setorial a representar de 25% a 30% do PIB brasileiro5. No comércio exterior, que tanto parece preocupar os articulistas, as cadeias produtivas brasileiras ligadas ao agronegócio exportaram em 2013, perto de US$100 bilhões e importaram US$17 bilhões, incluindo até feijão, gerando um saldo de US$83 bilhões. Claro que é um contrassenso vender matéria-prima para ração animal a preços baixos e carne oriunda de pecuária de baixa produtividade. Mas, se carne bovina e alimento para animais fossem exportados com alto valor agregado, permitindo a importação de feijão e melhorando a balança comercial, não seria isso que tornaria o modelo insustentável.
Ao abordarem a questão da água, o desastre, então, se completa. Há uma ignorância total e absoluta sobre o que seja o ciclo hidrológico: a água que cai com as chuvas, a que corre, a que infiltra e penetra no solo, a que as plantas e o solo evaporam após utilizá-las, e aquela que mantém as reservas subterrâneas. Esse processo é totalmente influenciado pela energia do sol e pela gravidade, além dos grandes movimentos climáticos regidos pelos oceanos.
Numa situação primitiva, com o terreno recoberto por florestas nativas, ao ocorrer uma precipitação, parte da água é retida nas folhas das copas. Uma porção dela é evaporada e outra é fornecida lentamente ao solo através dos galhos, troncos e raízes, indo se acumular no lençol freático que, por sua vez, vai alimentar as nascentes, e criar, manter ou aumentar as reservas. Uma fração dessa água da precipitação também vai, por “deflúvio superficial”, ou seja, pelo escorrimento, para os cursos d’água. Esse quadro é produto de um demorado processo de formação do subsolo, dos solos e da vegetação. A maior parcela dessa água é utilizada pelas árvores e acaba evaporando para atmosfera, fechando o ciclo.
Quando há uma interferência humana nesse delicado equilíbrio, por exemplo, suprimindo a vegetação nativa e introduzindo culturas agrícolas, pastagens, ou mesmo florestas, várias modificações acontecem. Em primeiro lugar, há um aumento do deflúvio superficial, fazendo com que parte da água, que era antes captada pelas copas florestais, passe a ir mais rapidamente para os cursos d’água e, consequentemente, alimentando com menores quantidades o lençol freático existente. Isso tenderá a reduzir, em longo prazo, o volume total de água disponível nas reservas subterrâneas. Quaisquer culturas agrícolas, implantadas nessas áreas, em função de suas altas produtividades, são bastante exigentes em água e nutrientes. Dessa forma, vão paulatinamente reduzindo cada vez mais o estoque de água existente nas reservas, se não houver o uso de técnicas de conservação como plantio direto, curvas de nível, rotação de culturas, consorciação, controle integrado de pragas, proteção de cursos d’água, quebra ventos, manutenção de áreas de vegetação nativa.
Essa perda hídrica já existe no Nordeste, no Sudeste e no Sul do Brasil, notadamente na faixa litorânea, há quase 500 anos. São cinco séculos de retirada de água, sem a reposição equivalente, em face das modificações provocadas pelo desmatamento. Nessas condições, qualquer cultura acaba provocando reflexos na “produção” de água das bacias. Assim, culturas conduzidas de maneira inadequada podem de fato levar a uma relativa escassez de água, o que, no entanto, não é exclusividade de uma determinada espécie, seja ela florestal ou agrícola6. É um problema do manejo agroflorestal e não da espécie cultivada. Os reflorestamentos, por seu turno, acabam por diminuir a quantidade de água de deflúvio, o que leva a concluir que a importância das florestas não está nos fluxos imediatos de água, porém, no controle do armazenamento de água no solo. Dessa forma, as florestas não estão ligadas apenas a um aumento dessa estocagem, mas ao efeito regulador que exercem sobre esses mananciais. Atualmente, existem teorias que vão além dessa função reguladora. Por intermédio da “evapotranspiração”, as grandes florestas, como a amazônica, mandariam para a atmosfera verdadeiros rios formados pela evaporação do Atlântico que “bate” nos Andes e volta. Esses “rios aéreos”7 alimentariam chuvas em outras regiões, como o Centro-Sul do país. Um desmatamento expressivo naquela região causaria problemas de seca nesta última. Essa teoria, no entanto, não tem unanimidade, havendo cientistas que afirmam que o processo é exatamente o inverso. É uma grande polêmica entre os meteorologistas.
De qualquer modo é fundamental, ao se pretender estabelecer uma cultura agrícola qualquer, mesmo as florestais com finalidades ambientais, levar em consideração o “balanço hídrico”, para que não se venha a ter problemas de escassez de água em função da relação entre o requerimento associado às altas produtividades inerentes a essas culturas, e o nível de precipitação anual médio do local.
A fórmula básica do ciclo relaciona a evapotranspiração, ou seja, a água que sai evaporada do solo e mais a que a planta utiliza e transpira e devolvida para a atmosfera e que é maior parte do processo, com os outros destinos da água no solo. Evapotranspiração é, portanto, a quantidade de água necessária para as culturas crescerem de forma otimizada, ou seja, o que elas vão consumir sem comprometer o nível das reservas subterrâneas.
A água “disponível” para utilização, fora a evapotranspiração, é de aproximadamente 10% da precipitação local, e ela é liberada no prazo de alguns dias. Ora, afirmar, como tem sido feito, em algumas publicações contra o agronegócio, que, sem suas atividades, a produção de água seria igual à precipitação, deve ser considerado como uma desonestidade intelectual. A menos que toda água precipitada ocorresse sobre uma imensa laje de concreto ou asfalto.
Retomando, o consumo de água pelas plantas é igual à evapotranspiração e varia de espécie para espécie vegetal, assim como a quantidade de água necessária para produzir determinada quantidade do produto que se queira analisar.
Note-se que a evapotranspiração é responsável por 60-70%, em média, da quantidade total do destino da água que cai pelas precipitações. É essa água que erroneamente é considerada como “consumo” das culturas agrícolas. E aquilo que se chama de “água aproveitável” (escorrimento superficial) é de cerca de 1%, sendo de fato muito pouco!
Mas afinal, porque existe falta d’água na região metropolitana de São Paulo?
Porque há um consumo maior do que a quantidade disponibilizada pelas chuvas nas bacias que fornecem água para a região, além de, como é óbvio, não se conseguir aproveitar toda a água que não é evapotranspirada e infiltrada, para abastecer a demanda. Com a urbanização, a distribuição do consumo não acompanhou a distribuição física das precipitações, e a água que cai sobre o Estado não consegue ser aproveitada em todo seu potencial.
Mas, na agropecuária, isso se inverte, e cerca de 9% da precipitação, que é detida na superfície do solo, gera muita água, que acaba “sobrando” para outros usos, como abastecimento urbano, geração de energia e uso industrial.
Outro parâmetro que se utiliza para “medir” a água na agricultura é a eficiência no uso da água, ou seja, de quanto é o consumo de água para se obter um quilograma de um produto. É eficiência da transformação da água em produto.
Tudo que é irrigado tem um consumo de água muito grande. O que não é irrigado possui um consumo relativamente baixo de água. Isso, entretanto, não quer dizer que essa água “fique” no produto. Toda planta precisa de água, como os humanos, porém, essa água é utilizada e volta para o ciclo.
Quem lê aqueles artigos, sem prestar-lhes muita atenção, acaba “vendo” a água sendo consumida pela agropecuária e “desaparecendo” nas “regas” da soja ou na sede inigualável dos bovinos. A soja não é “regada”, a água da chuva “passa” pela planta, onde 18% dela fica retida nos grãos na hora da colheita. O restante retorna ao ciclo novamente. Assim, apenas cerca de 640 litros ficam embutidos na produção anual de soja, ou 0,00005%!
O mesmo se passa com o gado. A pecuária bovina em São Paulo, a mais evoluída do país, é a atividade que mais produz água para a população paulista. Ouve-se muito que para se produzir carne bovina se gasta muita água. É verdade. Para produzir um quilograma de carne, são consumidos cerca de 8 mil litros de água, que, entretanto, é continuamente reciclada. Não fosse assim, o boi teria no abate cerca de 2 mil toneladas! Pelo mesmo raciocínio, um ser humano, adulto aos 15 anos, pesaria 16 toneladas. Ao considerar a água para a sua sobrevivência, ele pesaria 600 toneladas. Mas, como nas terras paulistas se produzem, em média, 120 quilogramas de carne (com 70% de água) bovina por hectare por ano, a pecuária acaba sendo a atividade de menor extração de água da agropecuária paulista.
Portanto, para se verificar a disponibilidade de água, tem-se que usar o consumo de água por hectare/ano das culturas multiplicado pela área que cada uma delas ocupa, levando em conta as precipitações locais. Dez por cento desse montante é a “oferta” de água do estado, que deve ser confrontada com o consumo: urbano, industrial, doméstico, energético.
A precipitação média no Estado de São Paulo gira ao redor de 1.200/1.300 mm, ou seja, 12 a 13 milhões de litros de água por hectare por ano. As diversas culturas, umas mais, outras menos, “produzem” por hectare e por ano os milhões de litros de água que vão para outros usos. Destes totais, cerca de 10% vão diretamente para os cursos d’água e o restante é liberado paulatinamente para alimentação dos lençóis freáticos, e depois para os usos correntes. Grosso modo, o escorrimento superficial no Estado de São Paulo é de cerca de 3 bilhões de metros cúbicos por ano, suficientes para abastecer uma população de 45 milhões de pessoas com um consumo médio de 200 litros por dia (a ONU propõe um consumo diário de 110 litros por pessoa). Note-se que esses 3 bilhões de litros são apenas 10% da água que é infiltrada (oferta de água) e que será disponibilizada para consumo ao longo do ano.
Verifica-se, portanto, que, longe de ser a vilã na questão da água, a agropecuária é perfeitamente sustentável do ponto de vista hídrico, e é a grande produtora de água para outros usos sociais, não sendo, de modo algum, fator de escassez de água
É um verdadeiro “aquonegócio”, pelo qual não existe nenhuma remuneração!
Fonte: Publicado pelo Instituto de Economia Agrícola, por Eduardo Pires Castanho Júnior
Parabéns pelo artigo,adorei!