“Eu não vou fazer porque meu vizinho não faz.” A frase, dita por um produtor rural de Mato Grosso, ilustra bem o pensamento daqueles que não aderem ao plantio de áreas de refúgio, recomendado para que o aumento da resistência das pragas não coloque em risco a tecnologia das sementes transgênicas.
Por falta de um marco regulatório, não existe fiscalização sobre a adoção do refúgio. Segundo recomendações técnicas definidas pelas empresas, cabe ao agricultor plantar pelo menos 20% das áreas de soja e algodão e 10% no caso do milho com sementes não Bt, a tecnologia que auxilia no controle das principais lagartas. Ainda que as normas sejam discutidas e avaliadas por um grupo técnico do Ministério da Agricultura, elas não têm força de lei. Na prática, faz o refúgio quem quiser. E quem faz corretamente se queixa da vulnerabilidade diante da situação.
Fernando Ferri, que plantou o refúgio em sua fazenda de cerca de 1.200 hectares, em Campo Verde (MT), conta que muitos produtores deixam de fazer por comodidade, pois confiam na eficiência das sementes transgênicas. “Quando você planta uma lavoura transgênica, já visa ter só o custo com a semente e depois não ter mais problema com as pragas”, diz.
No governo federal, a discussão sobre o refúgio se arrasta desde setembro de 2014, quando o então ministro da Agricultura e atual secretário de Política Agrícola, Neri Geller, já reconhecia o atraso na regulamentação. Na época, ele chegou a dizer que, se não houvesse consenso, instituiria o refúgio com um “canetaço”. A declaração não passou de bravata. Em pouco tempo, Geller reconheceu que era necessário mais discussão para fazer algo que fosse certo para os dois lados: produtores e indústrias.
Hoje, a discussão continua. O diretor do Departamento de Sanidade Vegetal (DSV) do Ministério da Agricultura, Marcus Vinicius Coelho, diz que o que impede o avanço é a Lei de Sanidade Vegetal, criada em 1934 e anterior, portanto, à transgenia. Marcus Vinicius explica que aguarda um novo marco fitossanitário para a regulamentação do refúgio. “O assunto segue em estudo no ministério. Nós temos grandes expectativas de que, com o novo marco legal de fitossanidade, isso possa ser reparado.”
Segundo o diretor, a proposta do novo regulamento fitossanitário está na Casa Civil, de onde deverá ser encaminhado para o Congresso Nacional. “Ele regula todo o sistema de vigilância e defesa vegetal e, ao mudar esse sistema, atualiza todos os mecanismos de controle. A partir dessa lei maior, poderemos editar normas infralegais, entre elas, possivelmente uma portaria para a regulamentação do refúgio”, explica. A expectativa de Marcos Vinicius é que a lei seja aprovada ainda este ano.
Enquanto a norma não sai, os produtores tentam se adequar. E chamam a atenção para a necessidade do plantio correto. É o caso de Alexandre Schenkel, também de Campo Verde. “Estamos dependendo simplesmente da orientação das empresas. O produtor deve ter a consciência de que é preciso plantar o refúgio. Tem de ter o hábito para não perdermos o que temos hoje”, diz.
O caso do milho, cuja safra está sendo plantada na região de Campo Verde, é emblemático para a necessidade do correto plantio das áreas de refúgio. “Nós já perdemos muita biotecnologia de resistência a pragas no milho”, diz Alexandre, que já colheu parte da soja plantada nos 720 hectares de sua fazenda e está preparando o plantio da área de refúgio de algodão. “Temos biotecnologia no algodão, na soja, no milho. Temos de ter responsabilidade em todas as culturas, mesmo porque a pressão das pragas é muito grande.”
Schenkel, que também é diretor da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja/MT), diz que a associação orienta os agricultores para o plantio e ressalta a importância do manejo no refúgio. “Tem de ter um acompanhamento para manter a resistência dessas biotecnologias”, explica o produtor, que faz o manejo integrado de pragas na lavoura. “Fazemos o monitoramento a cada três dias. Assim, conseguimos fazer um manejo em que o controle se torna mais econômico e menos agressivo. Não precisamos ficar aplicando toda hora com base no achismo. Área de refúgio é um manejo, biotecnologia é outro.”
A hegemonia das sementes tansgênicas também pode ser um problema. Fernando Ferri reclama que nem sempre as empresas têm em seus portfólios sementes convencionais para oferecer. “Tem poucos materiais não transgênicos (disponíveis). Para quem quer fazer, são poucas as opções. A pesquisa não tem levado a materiais convencionais e não transgênicos. Só se lançam materiais novos, e você fica refém. Se quero produzir mais, eu tenho de usar o transgênico”, diz. “Estou com 23 materiais para ter um dia de campo aqui na fazenda. Todos Intacta, todos transgênicos.”
Segundo Fernando, a biotecnologia eleva o custo. “Quando há material não transgênico, se você tem opção, ele é viável para a lavoura comercial”, diz. “Se tiver de fazer três aplicações de defensivos (nos transgênicos), são três sacas a menos no meu caixa. Se quer produzir mais, você tem de usar o material transgênico”, conclui.
O produtor Alexandre concorda, em parte. “Se não tiver procura, as empresas acabam não investindo tanto. Eu acredito que algumas empresas hoje nem têm mais no portfólio a semente convencional para vender, mas outras estão investindo nisso”, explica. “ É importante manter um portfólio de materiais tanto convencional como com resistência a herbicidas e também com resistência à lagarta. Isso depende do produtor, do que ele vai querer plantar.”
Uma das principais fornecedoras de sementes transgênicas, a Monsanto reforça a necessidade do plantio do refúgio. O líder de biotecnologia da companhia, Renato Carvalho, reconhece que há dificuldade de oferta de sementes não Bt. “Essa dificuldade acaba valendo para todas as companhias que têm um portfólio muito grande. Muitas vezes, as empresas precisam selecionar alguns híbridos não Bt que funcionam como se fossem coringas para serem o refúgio dos demais híbridos Bt”, diz.
Para a Associação dos Produtores de Sementes de Mato Grosso (Aprosmat), não faltam alternativas. O presidente da entidade, Gilberto Goellner, também produtor de sementes, diz que, quando o agricultor não encontra uma empresa, deve procurar outra que tenha um portfólio completo. “O que está faltando é uma orientação maior da empresa de genética, que não obriga o multiplicador licenciado a vender 20% de material para o refúgio. Elas não fiscalizam suficientemente, apenas indicam o caminho. O que falta é o produtor procurar.” Sem lei, o plantio de refúgio mais parece uma briga de vizinhos.
Reportagem publicada originalmente na edição 376 da revista Globo Rural